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Artesanato e Decolonialidade: construção de uma identidade cultural e simbólica no Recôncavo Baiano

Artesanato e Decolonialidade: construção de uma identidade cultural e simbólica no Recôncavo Baiano

Escrito por Vaneza Narciso | Publicado em:

Este texto sobre artesanato e decolonialidade analisa o saber-fazer artesanal da renda de bilro como uma herança europeia, que hoje encontra-se em mãos de mulheres negras do Recôncavo Baiano e que neste processo de hibridação cultural verifica-se uma possível afirmação da identidade de resistência do artesanato frente aos processos globalizantes.

Esta reflexão parte da compreensão de que a identidade cultural é mutável, e assim abrem-se caminhos para o debate sobre como o artesanato da renda de bilro, produzido no município de Saubara (BA), no Recôncavo da Bahia, resiste, buscando diálogos produtivos com as diversas áreas do conhecimento e o equilíbrio nas relações entre a tradição artesanal e a sociedade contemporânea (HALL, 2006, p. 12). Cabe destacar que neste diálogo com a contemporaneidade, a oralidade das artesãs é preponderante a manualidade, pois deixa entrever que suas histórias de vida estão impressas simbolicamente no trabalho artesanal e que a hibridação cultural faz parte da decolonialidade.

Artesanato e Identidade Cultural

Alguns autores contribuem para o entendimento conceitual de identidade cultural e, nesta abordagem, destacamos os trabalhos de Stuart Hall (2006), Zygmunt Baumann (2005) e Manuel Castells (2018). Para Hall (2006), um indivíduo possui múltiplas identidades, acessadas de acordo com as circunstâncias vividas. Em sua obra, ele menciona, por exemplo, algumas identidades: de classe, étnica, política, profissional e sexual. Já Baumann (2005) vai afirmar que existe um processo de identificação destas identidades, que se caracterizam e propõem ao indivíduo múltiplas experimentações. Hoje, a identidade é entendida como uma característica relacionada com o papel social que o sujeito desempenha em sua realidade (BARRETTO, 2015, p. 93-96).

artesanato e decolonialidade no reconcavo baiano

E qual ameaça sofre o artesanato enquanto elemento identitário na contemporaneidade?

O horizonte mencionado por Rios (1969), percebidos por alguns estudiosos, era de que “nos albores da industrialização, que a fábrica acabaria fatalmente por absorver a oficina e o artesanato, típico de uma era superada pelo capitalismo e pela indústria, passaria a atividade fóssil e marginal”. No entanto, a partir da crítica feita por Rios (1969), percebe-se, na atualidade, que o artesanato vem resistindo ao tempo e aos processos globalizantes, além de reforçar a sua importância e identidade cultural nos cenários produtivos locais. Também ganhou novas tipologias: artesanato brasileiro, artesanato indígena, arte popular e artesanato tradicional.

Neste aspecto, observa-se que o artesanato brasileiro na contemporaneidade ganha novo fôlego e passa a valorizar as características de onde ele é produzido, suas identidades culturais e aspectos simbólicos, reafirmando, assim, uma resistência frente ao cenário industrial e globalizante. Sobre este cenário, menciona-se que “[…] o artesanato tradicional só pode ser produzido enquanto os modos de vida que o sustentam continuarem a existir, ele é uma importante ferramenta de resistência cultural e política” e acrescenta que o artesanato permite que outros “grupos tradicionais como quilombolas, ribeirinhos e indígenas afirmam as singularidades de suas culturas, reivindicando a importância e o direito de preservar seus conhecimentos, modos de fazer e de viver” (ARTESOL, 2022).

artesanato e decolonialidade no reconcavo baiano
Artesanato e Decolonialidade: almofada para confecção da renda de bilro

Artesanato e Decolonialidade – Renda de Bilro

Os registros mais antigos sobre a renda de bilro datam dos séculos XV e XVI, porém, sem um marco temporal específico. Fortes indícios apontam que a técnica pode ter surgido entre Portugal e Espanha, por volta dos séculos XII e XIII (OLIVEIRA, 2014, p. 5). Vera Felippi (2021) destaca que a técnica foi mencionada pela primeira vez nos livros de Matio Pagano (1515-1588). Outros registros foram observados na obra de Mrs. Burry Palisser, em 1869. Já em 1913, Clifford utiliza a renda de bilro como ilustração (FELIPPI, 2021, p. 28-30).

De acordo com Ramos (1948), existe uma negligência histórica sobre o artesanato, sendo que quase não existem relatos sobre a origem deste saber-fazer, “a renda de bilros, entre nós, como, aliás toda e qualquer forma de artesanato, jamais mereceram a menor proteção ou orientação oficiais, sendo deixados aos azares da improvisação, significando abandono quase completo” (RAMOS, 1948, p. 35-36).

A renda de bilro é um objeto que pode ser analisado a partir de várias categorias de análises e contextos regionais, resultando em uma rica e vasta produção de conteúdo, visto que, no Brasil, observamos a existência de vários polos produtores da renda de bilro. Entre eles, está o município de Saubara (BA), localizado no Recôncavo Baiano, a cerca de 120 km da capital (Salvador), que possui pouco mais de 12 mil habitantes e surgiu no ano de 1550 (IBGE, 2022).

Ao segmentarmos a população local por gênero, observa-se que os homens vivem da pesca; já as mulheres, trabalham na coleta de mariscos, complementando a renda familiar com a produção e comercialização do artesanato. Neste município, encontra-se a Associação dos Artesãos de Saubara (também conhecida como Casa das Rendeiras) que possui atualmente 110 associadas, das quais 55 estão em atividade. Destas, 43 artesãs atuam na produção da renda de bilro e outras 12 estão dedicadas ao artesanato de palha.

Mãos negras, Renda branca

É possível estabelecer uma reconstituição epistêmica do modo de ser, saber e fazer da renda de bilro através da oralidade das artesãs, mas também nos poucos trabalhos científicos sobre a renda de bilro saubarense. Na pesquisa “As rendeiras de Saubara – da educação informal à educação formal: estudo de caso na Associação dos Artesãos”, Tourinho (2019) mencionou o resultado do trabalho feito pela Associação, conduzida pela mestra-artesã Maria do Carmo, ela diz o seguinte: “tendo ganhado a confiança no mercado e o reconhecimento da comunidade de outras cidades, e até estados e países”, observou-se a necessidade de organizar a transmissão deste saber-fazer através de cursos e, deste modo, “continuar o trabalho artesanal na região, assim não deixando se perder no esquecimento dos antepassados” (TOURINHO, 2019, p. 17).

artesanato e decolonialidade no reconcavo baiano
Dona Antonia Erotildes Foto: Ômi Rendero

Na dissertação de Oliveira (2019), com o tema “Mãos que cosem a memória: as Rendeiras de Saubara-BA e o protagonismo de mulheres negras no patrimônio”, destaca-se o papel das artesãs na salvaguarda deste trabalho artesanal. Evidencia-se a construção da identidade cultural do saber-fazer a partir das expressões orais das rendeiras, o modo como elas observam o mundo e se relacionam com ele.

Representante da Associação dos Artesãos, Maria do Carmo revela a sua relação mágica com a renda de bilro ao dizer que “Por isso que chama magia do Recôncavo, porque é uma magia mesmo a renda de bilro”. Ela também aborda a questão da independência feminina (algo que não é exercido pela maioria das rendeiras), conforme trecho em que diz: “eu não aceito que ninguém mande em mim, nem diga o que eu tenho que fazer. Eu não sou mulher de pedir, eu sou de avisar” (OLIVEIRA, 2019, p. 71).

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Foto: Ômi Rendero

Sobre o diálogo das artesãs com outras áreas do conhecimento, tem-se a parceria das rendeiras com a designer Márcia Ganem, que desenvolveu pesquisas na comunidade. Como resultado desta proposta, alcançaram projeção internacional, com apresentação do artesanato da renda de bilro de Saubara na Europa e nos Estados Unidos. Cabe mencionar a realização de alguns programas de capacitação e fomento ao artesanato, que proporcionaram às artesãs uma maior autonomia sobre a produção, mesmo que outros objetivos não tenham sido alcançado, conforme avalia Maria do Carmo, representante da Associação dos Artesãos, quando relata que o maior dos objetivos é que todas as rendeiras pudessem viver só da renda “porque é um trabalho que fica em casa, e a mariscagem é um trabalho muito sacrificado […]. O que eu gostaria que acontecesse aqui é que a gente encontrasse um mercado que escoasse nossos produtos” (OLIVEIRA, 2019).

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Foto: Ômi Rendero

Comumente, as rendeiras brasileiras utilizam o termo “birro” em substituição a palavra de origem europeia, “bilro”. Segundo o autor do livro Ômi Rendero (2009), o termo birro “não recebeu nenhum reconhecimento da parte da camada intelectual” e justifica esta situação ao fato de que “as rendeiras sendo na sua imensa maioria mulheres que muito frequentemente não sabiam quase ler, e que por consequência não tinham voz” (RENDERO, 2009).

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Dona Doralina, a mais antiga rendeira de Saubara Foto: Ômi Rendero

Ainda que, historicamente, a origem da renda seja vista como uma herança europeia, o que as artesãs destacam e se orgulham é o processo de construção da identidade transmitida por seus familiares, como vemos dito por Lidiane Silva: “Aí aos nove anos eu já sabia fazer a renda, […] E minhas primas todas elas fazem renda, aprendeu com minha vó também”, e acrescenta: “é uma tradição milenar passada de geração em geração desde os portugueses até aqui. É um fato histórico, uma tradição histórica. Tanto a renda quanto a palha né, o trançar”. Nisto, observa-se que outros elementos identitários são igualmente valorizados, como o artesanato 150 da palha, reforçando a multiculturalidade (OLIVEIRA, 2019).

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Foto: Ômi Rendero

Observa-se nos trabalhos científicos aqui citados, que a tradicional renda de bilro dialoga com diversas outras áreas do conhecimento, como a moda, o designer, novas tecnologias, educação, meio ambiente e desenvolvimento local. Assim, o artesanato da renda de bilro é visto, tanto pelas artesãs como pela sociedade, como um elemento identitário de resistência, que pode ser observado e analisado sob diversas perspectivas, valorizando o saber-fazer artesanal e salvaguardando a tradição.

Artesanato e Decolonialidade

Os resultados aqui obtidos neste artigo sobre artesanato e decolonialidade permitiram compreender que o conceito contemporâneo de identidade cultural não é algo imutável, pois os signos e símbolos que a compõem sofrem o processo de hibridação cultural através de transições e mutações ao longo das épocas. Acrescenta-se a este ponto as diversas possibilidades de análise do artesanato no universo acadêmico e científico, sob as mais diversas perspectivas. Percebeu-se que a produção da renda de bilro em Saubara se atualiza constantemente e resiste às mudanças do tempo, sobretudo ao dialogar com outras áreas do conhecimento. Espera-se que estas reflexões contribuam e estimulem, em alguma medida, para a preservação da identidade cultural da renda de bilro na comunidade de Saubara.

artesanato e decolonialidade no reconcavo baiano
Leitura recomendada

Artigo sobre artesanato e decolonialidade escrito por: Vaneza Narciso, Viviane Narciso e Marcos Paulos Sales e publicado como capítulo de livro na obra EDUCAÇÃO, SOCIEDADE E MEIO AMBIENTE: desafios, saberes e práticas da Editora Bagai.

Clique aqui para baixar o capítulo completo sobre artesanato e decolonialidade.

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